Joël Farges, cineasta e historiador: ‘O mundo é totalmente voltado para a imagem’

Joel Fargese: “O digital e o YouTube dessacralizaram a relação com a imagem” – Fabio Rossi / Agência O Globo

“Nasci em Angers, em 1948. Quando eu era um jovem cineasta, queria saber o que tinha acontecido antes do início do cinema. Na época, não entendia porque esse período quase não era estudado. Sou um viajante nato, e, por isso, passei a produzir longas de ficção pelo mundo, em países como China e Cazaquistão”

Conte algo que não sei.

Quando falamos na invenção do cinema, nós nos lembramos apenas dos irmãos Lumière, e não dos inventores que testaram, sem sucesso, outras centenas de máquinas. Em uma primeira etapa, os cientistas buscavam decompor o movimento dos corpos. Só que, em seguida, outros se interessaram em recompor o movimento, como foi o caso dos Lumière.

Por que estudar a pré-história do cinema?

A busca pela invenção do cinema, num período de 20 anos antes dos Lumière, concentrou todos os elementos da modernidade ocidental e todas as problemáticas da nossa civilização: a fotogenia, a representação dos gestos… O nosso mundo de hoje é totalmente voltado para a imagem. Temos permanentemente essa representação de nós mesmos na nossa cabeça.

Que inventor você citaria?

A história de Albert Londe me interessa em especial, até porque fui eu que o “descobri” através de minhas pesquisas. Hoje ele é bem conhecido. Londe trabalhava em um hospital psiquiátrico e usou um aparelho cronofotográfico para registrar os movimentos das convulsões dos pacientes. Dez anos antes dos Lumière, ele encontrou um sistema de película que criava um efeito de realidade.

Quais foram suas descobertas mais surpreendentes?

Deparei-me com coisas estranhas: Aimé Le Prince, inventor que estava próximo de encontrar um sistema de estabilização de imagem. Um dia, pegou o trem com sua câmera para mostrar seus avanços aos Lumière, em Lyon. Nunca chegou lá.

O que aconteceu com ele?

Desapareceu e nunca mais foi encontrado. Houve investigações, mas ninguém sabe o que ocorreu. Durante um tempo, acusaram os Lumière de tê-lo assassinado, o que é absurdo.

Quando estudante, você foi muito próximo de Roland Barthes. Ele se interessava por sua pesquisa sobre cinema?

Não muito. Quem gostava era o Michel Foucault, para quem eu pesquisava. Ele se divertia muito com os meus filmes.

O que fascinava Foucault nessa área?

Havia uma relação forte entre imagem e medicina. Os pioneiros do cinema faziam muitas experiências com imagens de corpos nus. Havia um álibi científico, claro, mas também um certo prazer erótico nisso tudo. Essa dinâmica instigava Foucault.

Ou seja, já havia um certo erotismo no cinema antes mesmo de ele ser inventado…

Sim. Aliás, fiz um filme sobre o primeiro cineasta erótico da história. Era um francês que, em 1902, foi para Cuba achando que ia apresentar o cinema aos cubanos. Só que, àquela altura, todo mundo já conhecia o cinema por lá. Sem um tostão, ele resolveu filmar prostitutas e projetar os filmes nos bordéis para chamar clientes. Ficou rico, fez filmes até para o Rei da Espanha. Foi assassinado muito jovem.

Muitos cineastas falam em morte do cinema. Vivemos hoje na era do pós-cinema?

Não sei se podemos dizer que o cinema morreu, mas não há dúvida que o digital e o YouTube dessacralizaram a relação com a imagem. Há vídeos na internet feitos por amadores com mais espectadores do que filmes de alto orçamento em salas. Hoje, qualquer um pode fazer filmes, e creio, sim, que isso constitui uma espécie de pós-cinema.

Fonte: O Globo