Minha casa dá um filme

 

RIO – Imagine que um dia você esteja em casa, talvez debruçado na janela, talvez tomando sol na laje, ou saindo com os cachorros para passear. De repente aparece um sujeito à porta fazendo perguntas estranhas. Se a casa é sua, se o terraço tem vista para o Maracanã, se da sacada dá para ver o interior do apartamento ao lado, se caberiam 50 pessoas na sala, se um dos quartos poderia ser adaptado para um camarim, se naquele campinho de futebol se improvisa um heliponto. Diante da sua expressão de espanto, ele oferece um dinheirinho (na maioria das vezes um bom dinheirinho) para ficar lá por um, dois ou três dias. “Mas para quê?”, você se pergunta, muitíssimo desconfiado. Para fazer uma cena de filme com a Fernanda Montenegro. Ou um comercial de xampu com modelos internacionais. Ou tomadas aéreas para uma propaganda de cartão de crédito. Ou até para ver descer a Elke Maravilha num helicóptero para um comercial de pó de café.

 

Foi mais ou menos o que aconteceu com os personagens desta reportagem. Eles tiveram suas rotinas interrompidas por acaso pelas muitas produções audiovisuais que acontecem cada vez com mais frequência no Rio, devido ao aumento da demanda provocado pela Lei da TV Paga, sancionada em agosto de 2011, aquecendo o mercado carioca. Donos de imóveis ou responsáveis por áreas com características consideradas ideais para um cenário — como uma fachada de época bem conservada, uma bela vista ou uma arquitetura inusitada, por exemplo — eles acabaram transformando a sorte de morar numa “locação” numa segunda fonte de renda.

 

— Eu estava em casa, tocou um rapaz na porta, pediu para ver o imóvel, foi muito simpático… Hoje nós somos grandes amigos e já perdi as contas de quantas filmagens fizemos aqui — conta o artista plástico José Tannuri, que tem uma casa em Santa Teresa com peculiaridades que facilitam muitas produções.

 

Além de uma vista deslumbrante da cidade, há brises nas laterais que permitem a regulagem exímia de luz natural e muito espaço livre no jardim, para fazer caber as mais de cem pessoas envolvidas na equipe técnica de um simples comercial de xampu.

 

— Eu vivo aqui com minha mulher, três filhos e três cachorros. Você pode imaginar a confusão que é quando tem gravação. Nos mudamos todos para um único andar, onde fica meu ateliê, e liberamos os outros, mas é normal num dia almoçarmos com o Lázaro Ramos, no outro cruzar com o Alexandre Borges na escada…

 

Lá foram filmados diversos comerciais de carros, eletrodomésticos, cartões de crédito e produtos de beleza. Para cada empreitada, as equipes alugam o espaço por um ou até sete dias. A garagem vira restaurante, o quarto de hóspede é transformado em camarim, os móveis são retirados, etiquetados, empilhados. Vez ou outra, os proprietários são obrigados a deixar os cachorros num hotel, para não correrem o risco de latidos fora do script. A próxima marcação já foi feita: a sala está reservada para ser um dos cenários fixos de uma minissérie da TV Globo escrita por Aguinaldo Silva, que começa a ser gravada em breve.

 

— É curioso, porque quando construí essa casa nunca poderia imaginar que ela seria usada para isso. Fico bastante impressionado com os problemas que surgem durante as filmagens e a maneira como são resolvidos: certa vez, quando estavam a poucos minutos de começar a gravar, começou um show nos Arcos da Lapa e o som vazava todo para a sala. Em poucos minutos, a produção foi até lá, conseguiu parar o espetáculo por uma hora e gravar o comercial — diverte-se Tannuri, lembrando as “exigências” de algumas estrelas que já passaram por sua casa. — Como aqui é muito aberto, não precisamos de ar-condicionado. Mas uma vez uma atriz de primeiro time não quis suar e tiveram que trazer dois geradores gigantescos, que ficaram na rua, passar uma tubulação imensa pela janela para refrigerar a casa toda.

 

Uma das vistas mais bonitas da cidade, o topo do Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, já foi cenário do filme “Tropa de elite’’, de campeonato de futebol de programa da MTV, de comercial de marcas esportivas, de empresas de telefonia e até de pó de café com a Elke Maravilha. Em vez de cobrar o valor das diárias normalmente oferecido por este serviço — que pode variar de R$ 500 a R$ 4 mil (no caso dos imóveis desta reportagem), dependendo da casa e do tipo de produto que será filmado —, o líder comunitário Orlando Bernardo da Silva, 48 anos, mais conhecido como Dato, sugeriu que as empresas fizessem melhorias no local. Assim, já conseguiu reformar fachadas de casas de moradores que seriam filmadas e os banheiros da quadra em que treina futebol com seus alunos, além de ter recebido uniformes e equipamentos esportivos para as equipes.

 

— Eu sou um cara avesso a grana, a ter que lidar com dinheiro que é de todos. Prefiro que eles deixem um legado para a comunidade — explica Dato, que também é o carteiro do morro e idealizador do projeto social Esporte Seguro, que envolve mais de 300 crianças em treinos esportivos nos Prazeres. — É uma farra quando tem gravação aqui. A Elke Maravilha chegou de helicóptero, o Romário tirou foto com todas as crianças. Sobrou até pra mim, uma vez: me botaram de figurante no “Tropa de elite”. Gravei várias vezes, mas justamente essa cena tiraram da versão final do filme!

 

Quando alguma produtora precisa filmar uma bela tomada do Maracanã — e em ano de Copa do Mundo isso tem acontecido com bastante frequência — já sabe: a laje considerada como uma das melhores vistas do maior estádio do Brasil é a do seu Babal, como é conhecido o empresário Genival da Silva Batista, nascido e criado no Morro da Mangueira. Quando construiu a casa, o espaço era só a área de lazer da família. Mas depois que um fotógrafo publicou algumas imagens feitas dali, Babal começou a ser procurado para alugar o espaço para todo tipo de filmagem e de fotos publicitárias. Para a Copa do Mundo, a irmã, que mora ao lado, já virou uma laje novinha e Babal pretende fazer melhorias na sua, pois o espaço já está todo loteado para acomodar câmeras de emissoras de televisão estrangeiras, como Al Jazeera e CNN.

 

— Hoje em dia eu sei por que é que meu pai, imigrante lá da Paraíba, chegou aqui sem nada aos 18 anos e preferiu ficar no alto do morro, sem luz, água, nada. Essa vista aqui não tem preço — emociona-se Babal ao lembrar do pai, considerado um dos fundadores da “pedra”, espaço mais alto da comunidade.

 

Um dos produtores de locação mais requisitados do Rio, Daniel Fontoura explica que não é sempre que encontra pessoas dispostas a abrir suas casas, como Tannuri, Dato ou seu Babal. Certa vez, para encontrar um apartamento para o que precisava, em Copacabana, teve de deixar cartas em muitos prédios explicando seus propósitos aos moradores para ver se algum deles topava. Só recebeu um telefonema de volta.

 

— Eu precisava de um apartamento cuja sacada desse para filmar o interior do vizinho. Era para uma cena do filme “Meu nome não é Johnny” — conta Daniel, que tem um catálogo de locações com fotos que faz sempre que encontra algum lugar curioso ou interessante na cidade. — Quem ligou foi a dona Marô, uma simpatia. Chegando lá, dou de cara com aquele apartamento todo original dos anos 50. Os detalhes são tão incríveis que depois acabamos fazendo diversas filmagens na casa dela (da série de TV paga “Mandrake” a comerciais de mate).

 

A história de Marô Lagoeiro, 63 anos, é curiosa. Professora aposentada, ela herdou de uma tia-avó um apartamento de três quartos em Copacabana com a mobília e a decoração originais dos anos 50. Lustres, móveis, louças, prataria, quadros, bibelôs. Sem saber o que fazer com tudo aquilo, deixou como estava. Ideal para os produtores “caça-cenários”.

 

— Teve uma vez que eu comentei com a Fernanda Montenegro, que estava esperando para gravar na sala, que queria tirar essas pinturas da parede. Ela me disse para não tirar de jeito nenhum. Deixei aí — brinca Marô. — Depois é engraçado ir ao cinema e reconhecer a sua casa na tela.

 

As estratégias para se achar a locação ideal são muitas. Os produtores especializados espalham cartas, tiram fotos, fuçam cada rua da cidade. Se entram num prédio comercial da Avenida Rio Branco e topam com um amplo elevador pantográfico, por exemplo, anotam o endereço. Um piso interessante, uma parede de azulejos raros, idem. Sites de vendas de imóveis também. Tudo pode ser útil algum dia para uma filmagem. Daniel Fontoura tem um mapa particular do Rio: sabe que em Marechal Hermes há muitas casas originais do início do século, mais bem conservadas do que as do Santo Cristo; bem como a Vila Militar de Marechal Deodoro. Ou que na Ilha de Bom Jesus, no Fundão, dá para filmar cenas como se estivesse na ladeira do Pelourinho, na Bahia, barateando muito a produção:

 

— É importante encontrar este tipo de solução alternativa porque está ficando muito caro filmar no Rio. Maracanã, Cristo Redentor, Pão de Açúcar, por exemplo, são lugares que cobram um absurdo por uma diária, alguns lugares chegam a pedir R$ 100 mil. Além disso, há coisas que não dá mais para fazer como antigamente: fechar a Avenida Rio Branco, a Vieira Souto. A cidade está cheia de obras, precisamos pensar em alternativas sempre.

 

Em Suruí, um bairro de Magé, ele descobriu um pequeno mangue onde pode filmar cenas que reproduzem, facilmente, a Amazônia.

 

— Acho bacana, é um trabalho diferente, tenho aprendido muito com o pessoal do cinema. Eles me pagam mais do que eu ganho em um dia de trabalho, compensa muito para nós — conta Uanderson da Silva, um dos pescadores de caranguejo da região que leva equipes de filmagem até o tal trecho descoberto por Daniel nas suas andanças (no dia da sessão de fotos, ele levava uma equipe de uma produtora independente para analisar o local para um possível comercial).

 

As histórias curiosas de bastidores de filmagens se acumulam porque o mercado audiovisual carioca está bem aquecido, explica o diretor-executivo da Associação Brasileira de Produtoras Independentes de Televisão, Mauro Garcia. Graças à sanção da Lei da TV Paga, em agosto de 2011, os canais por assinatura são obrigados a exibir mais produções nacionais independentes.

 

— A Lei da TV Paga veio confirmar um movimento crescente que já vinha acontecendo com o aumento da base de assinantes de TV por assinatura no país. Em poucos anos, houve um aumento de 6 para 18 milhões no número de assinantes de TV a cabo, e a base desse aumento é a classe C e boa parte da classe D. Quando essa parcela da população inclui na sua cesta de consumo a TV a cabo, traz os hábitos da TV aberta, que é consumir mais produções nacionais. O assinante quer se reconhecer na tela. É aí que aumenta a demanda por este produto local — comenta Mauro.

 

Ele lembra que só em 2014, apesar de grandes eventos no calendário do país, como a Copa do Mundo e as eleições, há uma previsão de estreia de 175 longas-metragens nacionais, um recorde. Em 2013, foram 120.

 

— A maioria dos filmes recordistas de bilheteria é feita no Rio. E, se os preços na cidade estão enlouquecidos, afetando os custos de produção, é preciso reconhecer que há mais investimento na qualidade dos produtos, tanto em roteiro quanto em equipamentos ou acabamento. Ainda estamos muito longe dos episódios de séries americanas, que custam cerca de US$ 1 milhão cada, mas séries médias nacionais já custam mais ou menos R$ 200 mil, R$ 250 mil por episódio. Não acredito que este aquecimento seja um espasmo, é realmente uma tendência. A intenção é competir no mercado internacional. Vai ficar cada vez mais comum para o carioca topar com um set de filmagem no meio da rua — diz Mauro.

 

Ou dentro de casa…

 

Fonte: O Globo