Você está no time dos que ficaram surpresos com a indicação de O Menino e o Mundo ao Oscar de melhor longa-metragem de animação? Pois saiba que o sucesso do filme de Alê Abreu está longe de ser isolado dentro do mercado nacional. Uma zapeada pelos canais de desenho da TV paga ou no YouTube deixa algo bem claro: o brasileiro já faz animação em nível tão profissional que não é difícil confundir produções locais com estrangeiras, tamanha a qualidade do que tem sido apresentado.
Mas, longe de copiar apenas fórmulas, as obras nacionais são recheadas de tempero local e traço autoral. O Menino e o Mundo fez barulho porque valorizava justamente a riqueza visual e a criatividade poética de Alê no uso de lápis de cor, giz de cera e canetinha, tal como uma criança.
“Só consegui fazer desse jeito porque nós somos independentes”, disse o cineasta à revista Continente. “A gente produziu esse filme com essa condição que temos de fazer cinema no Brasil, com patrocínios de empresas através de editais. Por um lado, tenho um orçamento muito baixo, mas por outro há um ponto bastante positivo porque nunca tive essa preocupação de levar o filme por tal caminho por precisar vendê-lo.”
A ARTE DE FAZER MUITO COM POUCO
Fazer muito com pouco parece também ter se tornado uma especialidade do mercado nacional de animação. O longa custou cerca de 500 mil dólares. Seu principal concorrente na cerimônia que acontece este domingo (28), Divertida Mente, saiu por 175 milhões de dólares. A mesma discrepância acontece com as séries de TV. Um episódio de 11 minutos da brasileira Historietas Assombradas custa em média 40 mil dólares e sairia algo entre 150 e 200 mil dólares caso fosse feita nos EUA, segundo a revista Kidscreen.
O dinheiro é pouco porque a maior parte dele vem do poder público, na figura da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Ela fatia o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e a verba de renúncia fiscal em obras com potencial, mas que teriam dificuldade de sair do papel apenas com recursos privados. Uma visão simplista pode acusar a turma da animação de querer viver às custas do Estado. A realidade é mais complexa e prova que a demanda existia e apenas precisava de uma forcinha.
Na prática, esta tem sido uma forma de apresentar ao mercado produtos realmente competitivos e que valem o investimento. Um exemplo disso é que as duas séries líderes de audiência no país entre o público de 4 a 11 anos do Cartoon Network nos anos de 2013 e 2014 foram, respectivamente, Historietas Assombradas e O Irmão do Jorel, um resultado tão bom que fez o canal encomendar rapidamente novas temporadas delas.
A animação nacional também se beneficia da Lei 12.485 que, desde 2011, obriga os canais de TV por assinatura a exibirem ao menos três horas e meia semanais de conteúdo nacional. Com isso, aqueles especializados em desenho logo se transformaram em bons compradores dessas séries e passaram a assumir os projetos, muitas vezes, como coprodutores. O animador Victor-Hugo Borges, que chegou a realizar seus primeiros filmes em casa, com dois amigos, e hoje tem em torno de 50 pessoas se revezando na produção das “Historietas”, fala a respeito:
“O desafio é entrar no mercado com pé direito na TV, porque, se você falha na primeira temporada, é improvável que faça uma segunda. O público é exigente, pois tem uma base comparativa muito alta”
A série é produzida no Copa Studio, dirigido por Zé Brandão. Para ele, a indicação de Alê ao Oscar é benéfica para todos os outros colegas animadores, pois coloca a animação brasileira em evidência lá fora e ajuda a fazer negócios. “Historietas” acaba de ser vendida para o mercado asiático, por exemplo, e a perspectiva é que esse trânsito de conteúdo para o exterior aumente nos próximos anos.
“Na Índia há um grande polo de animação, mas para prestar serviço para os americanos. Já o Brasil tem vocação para criar seus próprios projetos. Estamos criando valor agregado. Não tem como querer virar potência econômica sem virar potência cultural”, afirma o executivo.
A opinião é a mesma do diretor do Anima Mundi — o segundo maior festival da área no mundo. “A gente criou um perfil de não ser só mão de obra barata. Prova disso é que está crescendo o número de coproduções com estúdios do Canadá e da França, nos quais a troca é de nível criativo”, diz Marcos Magalhães.
Entrar nesse mercado não é tão complicado, mas vale ficar atento a algumas dicas:
1) Use a internet a seu favor: busque informações sobre o maior número de técnicas possíveis, assista a making ofs de produções e não se canse de ver vídeos;
2) Participe de festivais (mesmo como espectador). É o lugar ideal para conhecer gente que já trabalha com isso, trocar ideias e, quem sabe, angariar parceiros;
3) Saber animar é mais importante do que saber desenhar. Arrisque-se: não tenha medo de experimentar. Autoaprendizado e formação continuada são fundamentais;
4) Procure uma escola ou, se já tiver alguma experiência, bata à porta de estúdios em busca de uma vaga. É com o trabalho diário na animação que o artista se especializa;
5) Crie argumentos e os apresente em eventos de mercado, como o Anima Business (braço de negócios do Anima Mundi) e o RioContentMarket. Assim é possível conhecer e entender como pensam os atores do mercado de exibição de filmes e séries e estruturar melhor seus projetos.
Para Marcos, um dos gargalos da produção no Brasil é a formação continuada, item determinante para que o artista saiba usar a criatividade a seu favor na hora de viabilizar trabalhos com tão pouco dinheiro:
“Sempre é possível ser original e encontrar tratamentos que driblam a falta de recurso. O segredo é nunca ficar preso a uma fórmula. O que a Disney fez não é o único caminho”
Ele conta que por volta de 60% dos filmes nacionais exibidos no Anima Mundi são financiados do próprio bolso. “O custo já não é mais algo tão importante hoje. A principal matéria-prima do animador é o tempo.”
UM MERCADO EM EXPANSÃO
E haja tempo para atender às demandas que vêm por aí, já que a animação se faz cada dia mais presente no várias diferentes telas que acessamos todos os dias. Um setor com alto potencial de negócio que só agora começa a ser explorado por aqui é o das animações para games.
A tecnologia também favoreceu os processos de produção, distribuição e divulgação. Victor-Hugo Borges mora em São Paulo e acompanha por Skype a maior parte dos trabalhos de Historietas Assombradas, realizados no Copa Studio, no Rio. Enquanto isso, canais no YouTube viram trampolim de exibição, como acontece com a tirinha Um Sábado Qualquer, transformada em animação, e plataformas de crowdfunding arrecadam dinheiro para projetos, como foi o caso de Anomalisa, filme de Charlie Kaufman que concorre ao Oscar com Alê Abreu e arrecadou 400 mil dólares pelo Kickstarter.
O brasileiro Alê Abreu também abriu uma campanha no Catarse para ajudar a custear a divulgação de O Menino e o Mundo entre os jurados do prêmio da Academia. A meta era arrecadar 100 mil reais, mas ela ultrapassou os 150 mil reais antes mesmo do encerramento. Entre as recompensas, estão artes originais utilizadas na produção.
Sim, existe mercado de animação no Brasil – e ele tende a crescer para todos os lados. “Essa é uma indústria nascente e, como todas do tipo, precisa de apoio institucional do Estado. É bobo achar que a gente não precisa disso. Boa parte desse boom criativo de agora vem daí. Ao mesmo tempo, tem muita gente fazendo filmes em casa e isso é importantíssimo, porque esse pessoal pensa fora da caixa e traz uma renovação criativa e técnica e uma inspiração que contamina todo o mercado”, diz Zé Brandão. É. A coisa está animada.
Fonte: Projeto Draft